Rock, ou a religião que se perdeu
[No Destak]
Vai-se um R.E.M., vem um Rock in Rio, e a certeza de que envelheci se aguça. Ir a um festival parece-me hoje sacrifício enorme – que há dez anos, tirava-se de letra. E a verdade é que cada vez menos bandas novas me tocam.
Outro dia, confessei minha falta de entusiasmo com as bandas novas a amigos que celebravam o novo momento. Para eles, finalmente o rock estava livre do culto ao rockstar; temos obras cada vez mais “abertas”e assim não somos obrigados a levar 10 canções para ouvir a única de que gostamos (é só baixá-la). E ainda se pode escolher como ouvi-las: citavam-me o último do Radiohead, que diziam ser ainda melhor na encarnação remixada. Calei-me: nunca me vi prisioneiro de rockstar, nem achava que uma obra “fechada” fosse um mal em si. Havia, sim, discos ruins e discos bons.
Sinto falta de quando o rock, em qualquer língua, tinha mais a dizer. Não exatamente uma mensagem cantada, mas uma postura contestadora de qualquer coisa. Via no rock uma estranha forma de arte, apoiada no trio gravação-show-vida. Por vida, entenda-se tudo que fosse captado pela mídia: declarações, protestos, escândalos, tudo contribuía para reforçar ou até negar a obra. Eles viviam mais intensamente que nós, e isso era também uma forma de arte poderosa – que nos alterava a alma.
Hoje, as bandas não contestam. Ao contrário, elas endossam a vida como ela já está, além de algumas marcas. Propõem quase nada além de dançar. Nada errado em si, mas é como se o rock tivesse selado um pacto de não-agressão com o mundo – e o rock sempre foi perigoso, em qualquer década. Será que o surgimento da internet decretou o fim do tédio, o inimigo comum que o rock sempre enfrentou? Se sempre temos com o que nos distrairmos assim que nos conectamos, contestar já era. Não há mais inimigos, e lugar de sonhar é na cama.
Ser legal não era suficiente para uma banda quando havia gravadoras. Triste é ver que a facilidade de produzir e divulgar rock não promoveu ambições autorais, ou vontade de dar ao público em doses generosas o fascínio dos velhos concertos de rock, que injetavam endorfina. O que tenho visto, salvo raras exceções, são grupos cool , atrás de um ou outro “hit”. Os heróis e os mitos da religião que se perdeu deram lugar a pessoas a quem não precisamos gastar muito de nossas atenções. Elas fazem shows porque gostam; afinal, se fosse apenas um disco tocando, o impacto em nossas vidas seria rigorosamente o mesmo.